Empreendedorismo e fé: como uma “igreja empreendedora” celebra o mês das mulheres
- sitenuesde
- 4 de abr.
- 6 min de leitura
Atualizado: 7 de abr.
Por Esther Alferino

A instrumentalização do 8 de março pelo capitalismo é das coisas mais cansativas para mim, enquanto mulher feminista. Distorção e esvaziamento de pauta, apagamento da luta das mulheres operárias, tentativas distorcidas de reconhecimento e afeto, comercialização de coisas tão sérias e valiosas. Contudo, assim como o Natal majoritariamente não é sobre o nascimento de Cristo, o Dia Internacional das Mulheres há muito não é uma data de luta pela emancipação, vida, segurança e dignidade das mulheres. De maneira geral é dia de receber mensagens prontas no whatsapp, um único bombom no trabalho, uma miniatura de espelho com nome de algum vereador e uma chuva de publicidade de cosméticos, roupas, sapatos e bolsas, e anúncios de exibição de comédias românticas nos canais de TV, porque claro, é o gênero cinematográfico que toda mulher gosta. Talvez algum canal faça uma ousada exibição de Erin Brockovich – Uma mulher de talento, ou algum título semelhante, que demonstre a “força” da mulher através de uma trajetória pessoal de sobrecarga, porém de sucesso.
As igrejas, como todas as empresas, não ficam de fora das comemorações do dia e do mês das mulheres, e aqui vou discorrer sobre como foi o evento especial do mês das mulheres na Igreja Batista Atitude, em um condomínio da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Criada há cerca de 20 anos por Josué Valandro Jr., a IBA não para de crescer e agora está em todo o país e no exterior. Ganhou bastante os holofotes por ter sido escolhida por Michele Bolsonaro, que congregou na sede da Barra por anos. Com relevância cada vez maior no cenário político e empresarial da cidade, a igreja recebeu os candidatos à Prefeitura do Rio de Janeiro, demonstrando ser parte importante da agenda política do município. [1]
Além de políticos e outras autoridades, a igreja também costuma ser frequentada por empresários e influenciadores digitais. Josué Valandro Jr. tem, inclusive, presença marcante nas redes sociais, com mais de 600 mil seguidores somente no Instagram. Apesar da estética mais despojada, que nada lembra aquela imagem do crente que se vestia, falava e agia de maneira tão diferente do resto do mundo, e da estrutura do templo se assemelhar muito a uma casa de show bem estruturada e cheia de recursos, a retórica no que diz respeito à moral cristã é bastante conservadora. Mas essa igreja tem um diferencial. Ali eles abrem as portas, de maneira explícita, para o empreendedorismo. Há uma reunião específica chamada “Empreendedores de Atitude”, que acontece na segunda segunda-feira de cada mês, e é ao mesmo tempo palestra e culto, e para quem faz parte, não parece em nada ser contraditório.
No evangelho o centro é, ou deveria ser, Cristo. Então de que forma é possível que a retórica de autoajuda, em que o sujeito é o centro, tenha espaço na igreja? Dentro das reuniões dos Empreendedores de Atitude a resposta parece ser simples: desde que tudo seja feito para a glória de Deus, porque, segundo os responsáveis pelo evento, “o mundo só tem a ganhar com empresas prósperas nas mãos de cristãos de bem e honestos”, e claro, o crente fiel não deve se envergonhar de buscar uma vida plena ainda nesse plano e não apenas esperar pelo porvir. Segundo Funes e Ramírez (2021), em diferentes classes sociais indivíduos podem empreender por oportunidade ou por necessidade, porém, apesar das diferenças de motivação e oportunidade, existe em contexto neoliberal uma valoração positiva do êxito econômico e do que se pode chamar de espírito empreendedor, onde o sucesso laboral vai além da vida meramente material, mas também representa realização pessoal de forma ampla, com uma visão espiritualizada da vida como um todo.
No contexto brasileiro, de capitalismo periférico e industrialização tardia, em que processos históricos e sociais podem levar os indivíduos à sensação de desamparo por parte do Estado, e de fragilidade dos laços familiares e comunitários, especialmente nos centros urbanos com desenvolvimento não planejado e desordenado, muitas dessas igrejas passam, assim, a ser “prestadoras de serviços”, com tom didático de autoajuda e grande conhecimento de seus líderes sobre o mercado religioso brasileiro, o incentivo de uma fé ativa e poder pastoral tutorial. O principal público da Igreja Batista Atitude, não necessariamente é composta por indivíduos de grande capital cultural, mas com poder econômico elevado, participação na vida pública, inclusive política eleitoral. A partir disso, é em um processo racional que o indivíduo adere ao que lhe promete dinheiro, poder e prestígio. O discurso triunfalista afirma estar no trabalho, e não no Estado, mas sim no esforço individual e na perseverança com Deus, a chave para alcançar tais objetivos.
Para o “mês das mulheres”, obviamente a palestrante seria uma mulher, ovelha daquele próprio rebanho, autointitulada CEO da empresa com seu sobrenome, a mulher de 33 anos é casada e tem dois filhos. O tema: “Negócios e família”, afinal é sempre às mulheres que se pergunta como é possível conciliar casamento, filhos e trabalho. Toda a palestra gira em torno do depoimento pessoal é a narrativa da trajetória pessoal e profissional da oradora, que conta desde sua adolescência, da vontade de trabalhar e ter o próprio dinheiro, até a criação da empresa, a guinada do empreendedorismo em sua vida, e os acertos, mas principalmente os erros que cometeu. Ela disse que focaria nos erros, para que as pessoas que estavam ali não precisassem repetir.
A plateia majoritariamente masculina faz a oradora dizer que a palavra também serve para os homens, principalmente os que têm família, ou os que querem um dia ter. De fato a palavra iria agradar os homens, mas confesso que a plateia masculina me surpreendeu, já que a palestrante é empresária do ramo cosmético e de beleza, que é um dos grandes campos de atuação de mulheres que buscam empreender. As reuniões, de modo geral, são frequentadas por pessoas em busca de dicas e lições de empreendedorismo, e o ramo de atuação do palestrante quase sempre dita parte relevante do público. Naquela segunda-feira não parece ter sido o caso.
Ela ressalta dois momentos de virada em sua vida, a conversão à igreja e o início do relacionamento com o atual marido. Nos dois momentos ela revela que recebeu lições de humildade, de que ela não é autossuficiente, de que ela precisa de Deus e de outras pessoas, em particular de um homem de Deus que cuidasse dela e fosse “o cabeça da família”. Em nenhum momento ela usou o termo submissão, mas não foi preciso. Ainda em fase de namoro o marido já geria o dinheiro da empresa dela, parte do trabalho que ela alega ser seu ponto fraco, e afirma que ela sabe fazer dinheiro, ele sabe gerir. Que as coisas só se estabeleceram de fato, não apenas com sucesso, mas com estrutura, quando ela começou a ouvir a Deus e ao marido, inclusive ela cita sua ordem de prioridades: Deus, o marido, os filhos e depois o trabalho, e que às vezes a mulher fica esgotada porque quer dar conta de tudo sozinha, incluindo o trabalho doméstico, e despeja no marido todo “o mau humor de um dia exaustivo, sem pensar que o marido também teve seus problemas naquele dia fora de casa, que ele também está cansado.”.
Por fim, ela afirma que o segredo é reorganizar as prioridades, ter Deus à frente de tudo, não deixar o trabalho roubar o lugar da família, cuidar da saúde, que Deus irá mostrar a ideia que a pessoa foi ali buscar. O culto/palestra esteve cheio de elementos de igreja prestadora de serviços, muito bem acomodada ao contexto neoliberal. Valorização de uma trajetória de sucesso individual, patrocinadores, que financiam o evento e ganham uma propaganda durante o culto, uso utilitário do mês de luta das mulheres de maneira mercadológica, para no fim, pregar a submissão da mulher ao marido, porque é a vontade de Deus.
O templo parece descolado, as redes sociais estão organizadas e geridas de maneira profissional, quem está no altar/palco e quem está nos bancos também parecem descolados, há câmeras fotográficas registrando tudo, luzes e efeitos de casa de shows, possibilidade de dar dízimos e ofertas no pix, na máquina de cartão, apontando o celular para QRcode, tudo parece muito moderno, mas não é possível se enganar, ainda que a mulher seja dona de uma empresa que fatura sete dígitos, como a palestrante disse faturar, ela não está no controle, tal qual as mulheres evangélicas de 100 anos atrás.
Referências:
FUNES, María Eugenia; RAMÍREZ, Mercades Nachón. Empreendedores espirituales. Formas de integración entre trabajo, espiritualidade em professionales argentinos. In: Trabajo y Sociedad Sociología del trabajo- Estudios culturales- Narrativas sociológicas y literarias Núcleo Básico de Revistas Científicas Argentinas (Caicyt-Conicet) Nº 36,Vol. XXII, Verano 2021, Santiago del Estero, Argentina.
[1] https://veja.abril.com.br/brasil/a-rapida-expansao-da-igreja-que-virou-parada-obrigatoria-para-politicos-do-rio
Os textos assinados por colaboradores convidados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não refletem, necessariamente, a posição institucional do NUESDE.
Commentaires