Por Thalita Sarlo

Assim que Donald Trump foi eleito pela segunda vez presidente dos Estados Unidos me lembrei de um texto que fez parte da bibliografia da disciplina “Cultura capitalista e autoritarismo” escolhido pelo professor Fabrício Maciel. O texto não era um artigo acadêmico comum e continha artes visuais provocativas, talvez por isso tenha me marcado. A autoria é da professora e historiadora Heloisa Murgel Starling, e o título “Se o impensável acontecer, mantenha a calma” evocava a moderação para nós, que sentíamos estar vivendo uma distopia. Era auge da pandemia, as aulas do mestrado aconteciam no formato remoto e as notícias da política eram estarrecedoras. Entre nós, era impossível apreendermos aquela realidade como normal. A sensação era de ‘embrulho no estômago’. Em paralelo, líamos nessa disciplina Hanna Arendt, Theodor Adorno, Erich Fromm, dentre outros. Tivemos a oportunidade de assistir uma live com a autora do texto sobre o tema “Autoritarismo, Democracia e República” nesse mesmo período.
Na posse recente do presidente dos Estados Unidos, dia 20 de janeiro de 2025, a paixão dos apoiadores que vemos nas notícias relembra esse tempo de ‘embrulho no estômago’. A diferença, neste momento, é que há muitas razões para crer que esse será um governo com mais legitimidade que o primeiro. Ao palco, sob holofotes, subiu Elon Musk com discursos bizarros e gestos duvidosos, comparados ao que fazia Adolf Hitler. O evento também contou com o apoio dos bilionários, os verdadeiros donos do poder. No Brasil, o medo de repetirmos o que aconteceu nos EUA é real. Nessa mesma semana, a Folha de São Paulo publicou um vídeo em que o estrategista Steve Bannon, ex-assessor de Trump, fala diretamente sobre 'recuperar' o governo no Brasil e promover o partido AfD na Alemanha.
O texto que me referi acima relata como os livreiros independentes de Washington transformaram suas lojas em ferramentas de ativismo político. Eles decidiram selecionar livros de ficção, como “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, “1984”, de George Orwell e “O conto da aia” de Margareth Atwood. A autora destaca que os livreiros se apoiaram em uma disposição típica dos norte-americanos – a arte da associação – para alcançar objetivos coletivos (como analisado por Alexis de Tocqueville no clássico “Democracia na América”). O plano funcionou e as vendas dispararam. Entre os livros de ficção, estava também o livro que Hanna Arendt escreveu logo após a Segunda Guerra Mundial sobre as duas experiências totalitárias do século XX, nazismo e stalinismo: “As origens do totalitarismo”. Se até alguns anos atrás essa pergunta era impensável, hoje é completamente pertinente: “qual a possibilidade de vivermos uma experiência totalitária hoje?” Para Arendt, “os ingredientes indispensáveis para a construção de uma experiência totalitária subsistem, continuam inscritos como uma possibilidade concreta na lógica política das sociedades contemporâneas”. Sem mais spoilers do texto, deixo o acesso e a recomendação ao final da página.
Para explicar a ascensão de ‘Trumps’ ao poder não é incomum a busca por justificativas puramente econômicas. Nesse caso específico, analistas sugerem que a economia dos Estados Unidos está bem: os empregos estão em alta, os salários e a economia continuam a crescer, e o desemprego está em níveis historicamente baixos – analisa Oliver Stuenkel com base em uma reportagem do New York Times[1]. O que explicaria, então, a volta de Trump? O que impulsiona o ódio contra os imigrantes? Entre muitas declarações absurdas feitas durante a campanha, Donald Trump acusou imigrantes haitianos de comer gatos e cachorros para se alimentar. De que forma é direcionada a “culpa” dos imigrantes por problemas sociais nos EUA? O presidente e seus apoiadores frequentemente atribuem aos imigrantes a responsabilidade por questões como a criminalidade, a toxicodependência e retirada de recursos dos cidadãos norteamericanos.[2]
Importante não esquecer, como destaca o texto de Starling sobre os escritos de Arendt: a intolerância a um grupo específico (seja os judeus no passado, e os imigrantes nos EUA) está situada na raíz do ódio, um ingrediente indispensável para o totalitarismo que pode aflorar em sociedades democráticas. Declarações como essa se espalham e se tornam verdade com uma eficiência jamais antes vista, com o veículo dos algoritmos nas redes sociais. Para Arendt, esse tipo de propaganda cumpre o papel de “preencher o vazio da solidão do indivíduo e fornecer a ele uma visão coerente do mundo – mesmo que essa visão esteja em flagrante contradição com os dados da realidade” (Starling, 2019).
Nos estudos sobre a personalidade autoritária, Adorno encontrou em sua pesquisa empírica sujeitos cujo perfil indicava que eles aceitariam o fascismo se este se tornasse um movimento social forte. Esse estudo revela que esses indivíduos suscetíveis à propaganda fascista têm muito em comum. Adorno dispensa qualquer reflexão apressada sobre o nível de prontidão para aceitar o fascismo, por isso rejeita motivos econômicos e sociais como dominantes para formar a opinião do indivíduo. Para ele, as tendências não racionais sobressaem aos choques de interesse meramente econômicos:
“É como se o indivíduo estivesse pensando em termos de uma identificação com um grupo maior, como se seu ponto de vista fosse determinado mais pela sua necessidade de apoiar esse grupo e de suprimir grupos opostos do que pela consideração racional de seus próprios interesses” (Adorno, 2019).
Essa identificação com o grupo maior é uma característica importante nos movimentos fascistas, que os diferencia de experiências autoritárias de outra natureza, como algumas ditaduras ‘de cima para baixo’. No fascismo conhecido no século XX, a identificação com o grupo, com líder e com uma ‘causa’ é fundamental.
Em outro texto, Adorno destaca características importantes da propaganda fascista. Uma delas consiste em atacar “fantasmas” em vez de oponentes reais, ou seja, no caso específico que o autor analisou, foi necessário construir um imaginário do judeu ou do comunista para transformá-los em inimigos concretos. Isso não significa que esse imaginário seja uma mentira completa, pois a propaganda fascista encontra narrativas e ecos na realidade. Adorno complementa que a propaganda antissemita não era, de forma alguma, irracional, embora apresentasse uma lógica enviesada e distorções fantasiosas.
Outra característica da propaganda fascista é a performance do líder. Se você nunca leu esses trechos de Adorno, talvez a associação com a posse do presidente norte-americano seja inevitável:
“A construção do líder autoestilizado é uma performance reminiscente do teatro, do esporte e do assim chamado renascimento religioso. É característico dos demagogos fascistas se vangloriar de terem sido heróis atléticos em sua juventude. É assim que eles se comportam. Eles gritam e choram, lutam contra o demônio em pantomimas e tiram seus casacos ao atacarem ‘aqueles poderes sinistros’. Os típicos líderes fascistas são frequentemente chamados de histéricos (...) Violam os tabus que a sociedade de classe média colocou sobre qualquer comportamento expressivo por parte do cidadão normal e realista. Pode-se dizer que alguns dos efeitos da propaganda fascista são conseguidos por essa ação invasiva (...) Hitler foi aceito, não apesar de suas bizarrices baratas, mas precisamente por causa delas, de sua entoação falsa e suas palhaçadas, tudo isso foi observado como tal e apreciado”.
Em uma análise psicológica, Adorno sugere que essa exibição de poder é um ritual, e que esta fusão de impulsos do indivíduo com o esquema ritual está estreitamente relacionada ao enfraquecimento psicológico universal do indivíduo autônomo. É interessante também que, a partir dessa perspectiva, Adorno analisou que toda ênfase da propaganda faz com que ela se torne não o meio, mas o conteúdo último. Ela funciona como um tipo de realização do desejo. Nesse sentido, o objetivo é manipular os mecanismos inconscientes, mais que propor ideias e argumentos. Assim, a propaganda raramente diz alguma coisa concreta sobre aquilo que se supõe que tal movimento conduzirá, substituindo os fins pelos meios.
A ideia do líder é, portanto, essencial, pois a propaganda fascista é personalista, formando o imaginário “de uma figura paterna onipotente e não controlada, transcendendo em muito o pai individual, e assim, apta a ser engrandecida em um ‘eu do grupo’”. O sucesso do agitador fascista em se tornar líder só é possível diante de alguns fatores: um deles, muito importante, é a identificação. A psicanálise trata disso a partir do narcisismo: a idealização de si mesmo que o líder engaja nas massas.
Segundo Adorno, o próprio Freud antecipou o surgimento e a natureza dos movimentos de massa fascistas, ainda que partindo de uma perspectiva puramente psicológica. Para Freud, o novo tipo de sofrimento psicológico característico de sua época estava diretamente relacionado à psicologia das massas. Ele identificou a existência de um vínculo característico capaz de unir indivíduos em massa. Adorno complementa essa análise ao afirmar que o demagogo fascista desempenha o papel de criar artificialmente esse vínculo descrito por Freud.
Estudando a psicologia do nazismo, Fromm (1983) buscou compreender sob aspectos psicológicos, o fascínio que o nazismo exerceu sob um povo, ainda que tenha sido um movimento político e econômico. Importante salientar que essa não foi a causa do nazismo, mas sem essa base humana ele não poderia ter ido muito longe. Fromm observou também que o nazismo, assim como todo o fascismo, promete um tipo de poder e realização falsos. Para os pequenos burgueses “a satisfação emocional fornecida por aqueles espetáculos sádicos e por uma ideologia que lhes dava a sensação de superioridade sobre o restante da humanidade foi bastante para compensá-los”.
Para Fromm, se o modo de viver em sociedade não oferece uma base para solidariedade ativa, amor e trabalho espontâneos e há uma perda de vínculos capazes de proporcionar segurança, a liberdade torna-se um fardo. Nessa perspectiva, “O homem pode tentar tornar-se uno com o mundo pela submissão a uma pessoa, a um grupo, a uma instituição, a Deus. Dessa forma ele transcende a separação de sua existência individual por tornar-se parte de alguém ou de algo maior do que ele próprio, experimentando a identidade por intermédio do poder a que se tenha submetido” (Fromm, 1983).
Dos autores mencionados, Fromm é o que melhor orienta uma perspectiva da esperança, através da abordagem humanista. Para ele, o outro modo de evitar a submissão do homem seria estabelecer “o relacionamento espontâneo do homem e a natureza, um relacionamento que liga o indivíduo ao mundo sem eliminar sua individualidade. Esta espécie de relacionamento – cujos exemplos mais notáveis são o amor e o trabalho produtivo – radica-se na integração e no vigor da personalidade total”.
Retomando a referência que dei início a esta discussão, Starling (2019) termina o seu texto dizendo que podemos recorrer a grandes autores com a Hanna Arendt para pensar com eles, buscar novas perguntas e avaliar a oportunidade de promover ações. É comum no campo progressista que a sensação de impotência diante dos fatos recentes seja maior que a capacidade de concretizar ações políticas. Muitas vezes, as críticas aos progressistas e ao intelectualismo aparecem como aliadas à extrema direita. Pouca coisa seria mais eficaz que suprimir o pensamento, promover a sensação de catastrofismo e a resignação. Por isso, considero essencial poder ler aqueles que puderam interpretar tempos sombrios no passado, recorrer às diversas formas de arte e comemorar cada ato resistência.
Link para o texto citado https://revistaserrote.com.br/2020/05/se-o-impensavel-acontecer-mantenha-a-calma-por-heloisa-m-starling/.
A imagem do artista Caco Neves é da mesma série que foi publicada com o texto de Starling. Mais das obras disponíveis do artista podem ser encontradas em: https://caconeves.net/sobre-o-vermelho.
Referências:
Arendt, Hanna. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990,
ADORNO, Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora da Unesp, 2019.
FROMM, Erich. O medo à liberdade. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.
STARLING, Heloisa M. Se o impensável acontecer, mantenha a calma. Serrote, São Paulo, n. 31, p. 1-8, mar. 2019. Disponível em: https://revistaserrote.com.br/2020/05/se-o-impensavel-acontecer-mantenha-a-calma-por-heloisa-m-starling/. Acesso em: 21 jan. 2025.
[1] A análise está publicada numa rede social do pesquisador: https://www.instagram.com/p/DFDaf_VuWgg/.
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